Sou Rogério Piva, um malabarista que obteve como berço um projeto social na periferia da Zona Sul de São Paulo, no Bairro Pedreira. Projeto este no qual pude aprender a arte do circo em meio ao contexto de uma realidade violenta e injusta de um Estado que abandona grande parte do seu povo à própria sorte. Eu era mais uma daquelas crianças que frequentava o projeto esperando ganhar o pacote de lanche que era oferecido ao fim das aulas. Depois, voltávamos para as ruas da comunidade, na realidade que nos formava. Na escola, aprendi a sobreviver, pois já com 8 anos, presenciei o primeiro assassinato no portão do colégio. Lembro dos amigos armados e como isso me assustava e também me excitava. Lembro da presença da polícia, violenta, agressiva, também vítimas de um Estado ausente, perdidos e sem razão em meio aos tiros que iam de um lado a outro sem saber quem atingir.
Entre o crime, as drogas, a violência, a estrutura precária da educação e da família, o Projeto Social Circo Escola Enturmando Guacuri nos oferecia outra ótica de mundo, outros universos possíveis e foi lá, que depois de passar pelo teatro, dança, artes plásticas, me encontrei na arte do circo, especificamente no malabarismo aos 14 anos de idade. Frequentava o projeto desde os 6 anos, mas apenas aos 14 pude me redescobrir. Foi o divisor de águas na minha vida, pois ao aprender a jogar três bolas, já me via como um artista viajando pelo mundo.
A decisão de ser artista, para alguém da periferia como eu, não foi fácil, já que meu conhecimento de mundo era tão limitado, não tinha ideia do que faria ou como faria. Ser artista nunca foi uma opção para um garoto do subúrbio. As opções que tive e que fizeram parte da minha infância foram encontrar um emprego em uma fábrica no bairro, ou ajudar no bar do pai, ser carregador na feira e talvez um dia, ir pra um curso técnico ou faculdade qualquer sem que isso fosse minha real escolha, especializar-me em uma tarefa alienante para ser cada vez mais escravo de um sistema que só quer robôs programados. Mas ser artista? Isso sim era utópico, significava mais do que ser um doutor. Para o meu pai, fábrica e faculdade eram a dignidade, não importava o que ou como, eu só precisava ter um crachá e um diploma, isso era ter futuro. Nesse contexto, comecei a questionar sobre escutar e filtrar todos os conselhos dos meus pais.
Fiz meus aparelhos de malabarismo com cabos de vassoura e garrafas. Construí figurinos com roupas velhas de carnaval e comecei minhas apresentações nas ruas, nos vermelhos dos semáforos. Primeiro na Av. Interlagos, depois mais ao centro, entre a Av. 9 de Julho com a Av. Brasil. Fui aprendendo a independência através da arte do malabarismo. Entre os 14 anos e os 20 anos, foi muito confuso pra mim a ideia de ser artista e o choque com as pressões da minha realidade. Por momentos de desespero, sem ter dinheiro, desmotivado com a ótica com que o público me enxergava atuando nas ruas, como um drogado, como um ladrão, um vagabundo, por muitos momentos, a idéia de ser um artista escorria pelos meus olhos. Nesse tempo, consegui alguns pequenos circos que me contrataram, mas até então, na confusão e medo que ainda me dominava, eu também fiz cursos, trabalhei em escritórios, iniciei a faculdade e fiquei por todo esse tempo perdido, sem saber ao certo o que seguir, até que aos 20 anos, em meio ao cansaço de querer manter os estudos, trabalho e o circo, me lembro muito bem, após algumas aulas de filosofia e muita reflexão e questionamentos, decidi largar o estágio, trancar a faculdade e na certeza que não faria outra coisa que não fosse arte na minha vida.
Me empenhei sem medo, larguei toda a suposta segurança que essa sociedade me oferecia, fui viajar com minha mochila e passei a acreditar mais na arte que eu exercia. Fui com pequenos e grandes circos e também pelas ruas. Primeiro de Norte a Sul do Brasil, logo, depois de uma viagem arriscada para o Chile, ganhei o mundo ao ser visto por um empresário que me levou ao México a trabalhar no mais famoso e respeitado circo da América Latina, o Circo Athayde Hermanos. Depois, outros passaram a me conhecer e sigo atuando em Circos, festivais e ruas de todo o mundo. Já passei por dezenas de países e já fiz até um show para o Papa Francisco no Vaticano. Quando lembro da única decisão que tive de tomar, quando só precisei decidir acreditar no que eu fazia e finalmente insistir, com foco e determinação, um período significativo de tempo para saber realmente se era ou não o caminho a seguir.
Através da arte e das viagens, conhecendo pessoas, lugares, realidades e culturas diferentes, tenho tido as mais diversas reflexões. Passei a estudar mais que na faculdade, a ler, a me interessar pelo real funcionamento do mundo e como me manter mais livre e independente. Pude
entender minha história, minha realidade, minha formação. Venho compreendendo o papel fundamental e transformador da arte no mundo e percebi o quanto ela tem se tornado cada vez mais uma mercadoria para alguns poucos nessa sociedade. Ao atuar em tantos palcos, sempre me lembrava que eu, quando criança, jamais poderia assistir a um show dos que hoje eu faço parte, pois está sempre limitado a quem pode pagar por ele. E assim é o mundo artístico: o que deveria ser democrático por essência, está centralizado e destinado a uma parcela pouco expressiva da população, aquela que está geograficamente e financeiramente privilegiada.
Sempre fiz shows beneficentes, sempre tive isso como uma forma importante de me manter sendo artista, desde os 16 anos, quando fazia shows no bairro e também ensinava outras crianças em escolas públicas aos fins de semana. Mas conforme minhas leituras e viagens aumentavam, notei uma maior sensibilidade por essa questão, meus olhos estavam mais atentos e críticos, consequentemente, eu me tornava mais indignado. As leituras me alçaram a um patamar de entendimento da minha liberdade e do meu papel como artista, tendo como referência minha própria história. Isso colaborou para que eu aprendesse a lidar com o que eu fazia em um mundo de ambição, para que eu não me sujeitasse às condições inescrupulosas de empresários, para um entendimento melhor da minha dignidade e das capacidades que minha arte me oferecia nas diversas condições desse mundo. Isso eliminou diversos medos que muito me limitavam.
Atualmente viajo com muitos circos e festivais, sou contratado por diversas companhias e até tenho alguns prêmios e reconhecimentos internacionais. Gosto muito do palco, isso me empodera, alimenta meu ego, o que me faz questionar com frequência minha atuação e os lugares que trabalho, na indignação de saber que meu show não pode ser assistido por todos de maneira democrática (esse foi um dos motivos que me fez recusar o convite do Cirque du Soleil em 2014). Então, busco o equilíbrio entre ser um artista comercial e um artista social.
Nas minhas viagens, sou contratado por circos e diversas companhias, o que me gera uma boa receita e com isso, consigo me financiar para levar meus shows a lugares onde a ausência de acesso a espetáculos culturais é um fato. Me equilibro ao me aventurar em países da África, Ásia, América Latina e Oceânia para levar meus shows em povoados e comunidades desprovidas de qualquer entretenimento e quase sempre, abandonadas pelo Estado. Consegui assim, entender que posso estar tanto nos grandes palcos de países ricos, como em comunidades de países pobres. Nessas viagens que faço de maneira independente, tenho de buscar soluções a cada dia e provo a mim mesmo que posso confiar na arte que tenho e na capacidade que ela me oferece de me auto prover em cada lugar que passo. Cheguei no entendimento que fazer da arte mais democrática, de acesso a todos é uma escolha do artista que não mede esforços para levar sua mensagem para o mundo e colaborar para que ele seja mais justo. Portanto, essa busca pela descentralização, é a busca de um equilíbrio constante que tem me conduzido por vivências incríveis e me causado muitas transformações. Descentralizar e democratizar, fazer da arte livre, sair da minha zona de conforto, deixar um pouco o discurso de arte revolucionária e ser no mundo a revolução que tanto prego. Essa é a arte que acredito e que tenho me dedicado através do entendimento que venho conquistando.
Reentemente, em 2021, fiz o lançamento do meu primeiro livro Diário de Um Malabarista - Papua Nova Guiné onde relato uma das mais incríveis viagens que tive atravez da arte num texto crítico e poético. Também fiz o lançamento da minha coleção de literatura de cordéis com quatro volumes que se chama Cordéis de Um Malabarista e que conto algumas das histórias que vivi ao viajar pelo mundo.
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